EQUIPAMENTOS MECÂNICOS NA COZINHA

Os objetos de cozinha são importantes para entender a história do cotidiano doméstico e da alimentação na cidade de São Paulo, por isso o Museu Paulista-USP se interessa por coletá-los e, atualmente, eles são parte significativa de seu acervo. Os equipamentos mecânicos são alguns deles e, ao estudá-los, é possível saber sobre diferentes momentos do comércio, da indústria, e de como os paulistanos se alimentavam durante toda a primeira metade do século 20.

IMITANDO AS MÃOS DA COZINHEIRA

Os pequenos equipamentos mecânicos usados na cozinha foram desenvolvidos com a intenção de diminuir o tempo e o esforço aplicados pela cozinheira em suas tarefas. Girando uma única manivela, por exemplo, ela faria mover as engrenagens projetadas para imitar o movimento das suas mãos e, assim, descascar frutas e legumes, moer carne e grãos, e até mesmo lavar a louça sem precisar movimentar muito o corpo.

Essas invenções surgiram quando os países da Europa e os Estados Unidos passavam pelo processo de industrialização, em que era comum criar novas máquinas para otimizar o trabalho dos operários.

Isso ocorria principalmente nos Estados Unidos, onde muitos inventores se dedicaram a desenvolver engenhocas mecânicas para serem usadas nas casas, visto que, a partir de 1850, ficou cada vez mais comum que a dona de casa norte-americana realizasse as tarefas da casa sem a ajuda de empregados, já que muitos deles haviam sido contratados pelas fábricas. Usando as ferramentas mecânicas, essas mulheres podiam passar menos tempo cozinhando e, em vez disso, dedicarem-se ao cuidado de si e dos filhos.

OBJETOS IMPORTADOS PARA O BRASIL

Na coleção de objetos de cozinha do Museu Paulista-USP existem exemplares desses equipamentos mecânicos. A maioria deles foi produzida nos Estados Unidos e na Europa e vendida em São Paulo, entre os anos de 1910 e 1930, por lojas de departamento e importadoras, como a Mappin Stores, que ficava no centro da cidade. Tendo em vista que nos países do hemisfério norte havia muitos desses equipamentos e eles executavam funções diversas, quando analisamos o conjunto de objetos que estiveram nas cozinhas de São Paulo, vemos que poucos modelos chegaram até o nosso cotidiano atual.

Alguns deles eram utilizados para executar funções que já eram cumpridas com outros utensílios não industrializados, talvez por isso a sua incorporação na cozinha de São Paulo não tenha sido tão significativa. É o caso da batedeira, que batia ovos e massas de bolo, tarefa que também podia ser feita utilizando um garfo ou uma colher de pau. Outro equipamento, bem curioso, que foi pouco usado é uma espécie de panela ou peneira que tem orifícios na parte inferior e uma pá movida a manivela. Ela era usada para processar alimentos já cozidos, dando-lhes uma textura pastosa, e separar as sementes de alguns deles, como o tomate, que se transformava em molho quando processado. Porém, o mesmo resultado podia ser alcançado com o uso de uma peneira e uma colher.

produção caseira de alimentos

Por um longo período, o núcleo urbano da cidade de São Paulo era formado por casas com grandes quintais, onde os moradores tinham pequenas hortas, cultivavam alimentos e criavam galinhas, cabras e, às vezes, vacas. Assim, era comum que muitos deles produzissem alimentos para consumo próprio e para vender na vizinhança, como o leite, por exemplo, que podia ser comprado fresco nas ruas da cidade. Alguns equipamentos mecânicos importados eram usados no processamento desses alimentos para fabricar produtos que, hoje em dia, compramos em mercados, como o queijo e a manteiga.

sorvete feito em casa

O sorvete é um exemplo de comida produzida de forma caseira em São Paulo, ainda no começo do século 20. Para isso, utilizava-se uma sorveteira constituída por um balde de madeira, um compartimento metálico e uma manivela. A massa do sorvete era colocada dentro do compartimento e, entre ele e o balde, inseriam-se pedras de gelo. A manivela ajudava a bater a massa por bastante tempo enquanto o gelo a mantinha refrigerada. Como não era comum ter refrigeradores em casa nessa época, o sorvete era consumido logo depois de ser preparado. Caso houvesse a necessidade de mantê-lo fresco até a hora da refeição, o recipiente em que ele estava armazenado poderia ser envolvido com um pano úmido ou colocado numa geladeira, espécie de caixa de madeira abastecida com um grande bloco de gelo.

TECNOLOGIA NO CAMPO E NA CIDADE

Quando os aparelhos mecânicos chegaram às cozinhas paulistanas, muitas tarefas já envolviam o uso de tecnologia, sendo a maior parte delas produzida de maneira artesanal. Esse é o caso dos moedores confeccionados em madeira entalhada, utilizados para processar grãos de milho e produzir a quirela, ingrediente usado na receita da canjiquinha, por exemplo. Os raladores de mandioca também são exemplos de equipamentos mecânicos para processar alimentos in natura. Exemplares desses moedores e raladores podem ser vistos até hoje no cotidiano doméstico brasileiro.

equipamentos produzidos pela indústria brasileira

A indústria brasileira começou a produzir equipamentos mecânicos para processar os alimentos a partir da década de 1940, quando a industrialização foi estimulada no país e os processos de manipulação das ligas metálicas foram aprimorados. Desde então, é possível ver nas casas do nosso país moedores e raladores fabricados pela indústria nacional, presos às paredes ou às mesas das cozinhas, usados para moer carne, grãos e ralar coco.

novas necessidades, novos objetos

Ao longo dos anos, os hábitos alimentares se transformaram e os objetos usados na cozinha acompanharam essas mudanças. Em São Paulo, nos anos de 1950, os alimentos processados pela indústria se tornaram cada vez mais frequentes nas prateleiras dos mercados e isso motivou o desenvolvimento e a importação de abridores de lata mecânicos, como o Vac-o-Mat, um modelo produzido nos Estados Unidos, país onde o consumo de alimentos enlatados é bastante comum.


Para saber mais

CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material: São Paulo, 1870-1920. São Paulo: EDUSP/Fapesp, 2008.

COWAN, Ruth S. More work for mother: the ironies of household; technology from the open hearth to the microwave. New York: Basic Books, 1989.

FELICIO, Laura S. O liquidificador entra, a peneira fica. In: CARVALHO, Vânia Carneiro de (Org.). Casas e Coisas. São Paulo: Edusp; Museu Paulista da Universidade de São Paulo, 2022, v. 1, p. 136-157.

GIEDION, Sigfried. La mecanización toma el mando. Barcelona: G. Gili, 1978.

GOMES, Maria Eugenia Ferreira. Cozinhas, artefatos e mulheres – São Paulo (1880-1970). 2022. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2022. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-03102022-210926/publico/2021_MariaEugeniaFerreiraGomes_VCorrig.pdf

HOMEM, Maria Cecília Naclério. Princípio da racionalidade e a gênese da cozinha moderna. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, n. 13, p. 124–154, 2003. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/posfau/article/view/47751

OLIVEIRA, Debora Santos de Souza. A transmissão do conhecimento culinário no Brasil urbano do século XX. 2010. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-27042010-141556/publico/DEBORA_SANTOS_DE_SOUZA_OLIVEIRA.pdf

SILVA, João Luiz Maximo da. Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930). São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008.

SIMÕES, Renata da Silva. Dona Benta – Comer Bem: uma fonte para a história da alimentação (1940-2003). 2008. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2008. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-01022010-150903/publico/RENATA_SILVA_SIMOES.pdf

WERBEL, Amy B. The Foley Food Mill. PROWN, Jules David; HALTMAN, Kenneth (Eds.). American artifacts: essays in material culture. East Lansing: Michigan State University Press, 2000.

curadoria por:

laura stocco felicio

Laura Stocco Felicio é historiadora formada pela FFLCH-USP e mestranda em História Social pela mesma instituição. Atuou como pesquisadora associada ao projeto da exposição Casas e Coisas do Museu Paulista-USP. É autora do capítulo “O liquidificador entra, a peneira fica” que integra o livro “Casas e Coisas” publicado em 2022 pela Editora da Universidade de São Paulo e pelo Museu Paulista.

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