AS REPRESENTAÇÕES DA VÁRZEA DO CARMO

A várzea do Carmo, área alagadiça do rio Tamanduateí entre o Planalto de Piratininga e o bairro do Brás, despertou o olhar de pintores e fotógrafos desde o final do século 19 até sua transformação em um parque público. Para o poder público, as cheias da várzea eram um problema de saúde pública a ser resolvido, mas para os pintores e fotógrafos que por lá circulavam, elas representavam um embelezamento da paisagem.

A VÁRZEA DO CARMO NA FOTOGRAFIA

As primeiras fotografias da várzea do Carmo são de Militão Augusto de Azevedo, (1837-1905) e estão no Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo,1862-1887. Nas panorâmicas de 1887, feitas a partir do mirante localizado no Jardim da Luz, a linha do horizonte é tomada pela vegetação da várzea do Carmo. Nos panoramas feitos do alto do Planalto, nos fundos do Palácio do Governo, nota-se que a várzea permanece como uma área pouco edificada, apesar da passagem de mais de 20 anos entre os registros de 1862 e 1887. Já nas vistas parciais são percebidas as iniciativas de modernização da cidade – a construção de uma fonte no Palácio do Governo, e a presença de um sobrado com obras de pavimentação à sua frente, na Ladeira do Carmo em direção ao Brás.

O fotógrafo suíço Guilherme Gaensly (1843-1928) registrou uma das muitas enchentes na várzea como um embelezamento natural da paisagem. E João Alberto José Robbe fez uma sequência de panorâmicas do alto da torre do Palácio das Indústrias, em direção à região central da cidade.

A INUNDAÇÃO DA VÁRZEA DO CARMO

Um dos registros mais conhecidos da várzea do Carmo é a pintura de Benedito Calixto (1853-1927). O pintor já planejava criar um grande panorama da cidade de São Paulo desde meados de 1890. Em 1892, ele concretiza essa ideia, inspirado pela enchente de grandes proporções ocorrida no mês de março do mesmo ano. 

A pintura abrange das fábricas em funcionamento, à esquerda do aterrado do Brás, até as casas térreas e sobrados, à direita do aterrado do Gasômetro. O olho humano não teria essa amplitude de visão. O pintor justapôs imagens por pintores, pois elas ajudavam a diminuir o número de esboços realizados pelo artista antes de sua conclusão.

O pintor optou por não representar os inconvenientes da inundação e até as mortes causados por ela, noticiados no período, e sim a rotina da cidade – transportes circulando, a atividade no mercado e obras de edificação. A representação das áreas alagadas como um embelezamento da cidade foi intencional pois, para o artista, sociedade e natureza seguiam em harmonia, e a crença no progresso da cidade lhe permitia representar a superação dos desastres da inundação. 

Em 1892, o governador Bernardino de Campos autorizou a promulgação de uma lei que permitia ao Estado adquirir a pintura por dez contos de réis. No ano seguinte, ela foi exposta no Palácio do Governo.

A coleção de pinturas da Várzea do Carmo no Museu Paulista

Além da pintura de Benedito Calixto, existem outras no acervo do Museu que retratam a várzea do Carmo, encomendadas a pintores durante a gestão de Affonso de Taunay (1917-1945). Seis delas foram produzidas na década de 1920, momento em que Taunay prepara exposições no edifício para a celebração do centenário da Independência.

As encomendas podem estar relacionadas também a um esforço de preservação e divulgação da imagem da várzea do rio Tamanduateí como uma paisagem bucólica. Nesse período, a região já havia sido modificada em Parque Dom Pedro II. O parque foi uma alternativa encontrada pelo poder público para sanar os problemas relativos à várzea do Carmo e que passavam por banhos nus nas margens do rio, hábito considerado inadequado no regime republicano, até questões de saúde pública. 

Na maioria dessas telas vemos lavadeiras ou lençóis brancos quarando na beira do rio. Essas mulheres eram muito mencionadas nas crônicas da cidade. Nelas, contava-se que os estudantes da Faculdade de Direito e até mesmo o presidente da província iam até a várzea para vê-las com suas saias levantadas por conta do ofício exercido, o que gerava inúmeras queixas por parte das lavadeiras.

Além de fornecer aos pintores trechos de crônicas, Taunay lhes enviava fotografias como referência para a composição da paisagem. Um exemplo é a pintura feito por Augusto Luíz de Freitas que representa a ladeira do Carmo, feita com base em uma fotografia de 1862 de Militão Augusto de Azevedo. 

Na pintura, o artista elimina os transeuntes, à direita da foto, que certamente ficaram muito tempo ali parados para nela aparecer, pois o tempo de abertura do diafragma para captação dos registros era muito longo nesta época. A mudança feita pelo pintor aumenta o protagonismo da charrete. Também é substituído o calçamento de paralelepípedos da rua por um chão de terra irregular. Essas escolhas bem como a paleta de cores utilizada pelo artista reforçam o aspecto imperial da cidade e o bucolismo da paisagem.

A VÁRZEA TRANSFORMADA NO PARQUE DOM PEDRO II

No acervo do Museu há um outro panorama da várzea do Carmo, já transformada no Parque Dom Pedro II. É o tríptico de Henrique Manzo denominado Várzea do Carmo em 1941. 

Na pintura, o Parque Dom Pedro II funciona como uma moldura da metrópole, já que o verde escuro da copa de suas árvores contrasta com os edifícios que ocupam a linha do horizonte. Entre eles, destaca-se na tela da esquerda o edifício Guarany, prédio residencial de alto padrão feito pelo arquiteto Rino Levi; na tela central, o edifício Martinelli, que contrasta com o Palacete Nacim Schoueri, um prédio de baixo gabarito de uso misto construído para atender aos comerciantes da região da rua 25 de Março; e na tela da direita, o prédio do Banco das Nações, com seu relógio.

A obra segue um padrão disseminado nos cartões postais da cidade que elegeram a região como motivo fotografado. O próprio conjunto de fotografias feitas do alto do Palácio das Indústrias pelo fotógrafo do Arquivo do Estado e do Museu Paulista, João Alberto José Robbe, deve ter sido utilizado por Henrique Manzo na sua pintura.

A VÁRZEA DO CARMO NOS CARTÕES POSTAIS

No acervo do Museu há inúmeros postais que retratam a Várzea do Carmo no período de 1890 a 1950. A maioria deles são postais fotográficos que circularam nas décadas de 1940 e 1950, das principais editoras no período: Foto Postal Colombo e Foto Labor.

Os mais antigos foram feitos pelo fotógrafo Guilherme Gaensly retratando as lavadeiras próximas à Ponte do Carmo ou os fundos da ladeira da Tabatinguera. Esses postais disseminaram uma imagem da várzea com seus antigos hábitos, a lavagem de roupas e o trânsito de pequenas embarcações que transportavam mercadorias até as escadarias de madeira dos pequenos portos ao longo do leito do rio Tamanduateí.

Nos postais produzidos na década de 1920, quando o Parque Dom Pedro II teve seu auge de visitação, a maioria representa o edifício do Palácio das Indústrias, projeto do arquiteto italiano Domiziano Rossi, inspirado em um palácio genovês. O edifício abrigava as exposições industriais da cidade e hoje é sede do Museu Catavento.

Por fim, nos postais das décadas de 1940 e 1950 o parque passa a ser um ornamento da cidade que emoldura os arranha céus.


Para Saber Mais

Oliveira, M. L. F. de. O registro dos limites da cidade: imagens da várzea do Carmo no século XIX Anais Do Museu Paulista: História E Cultura Material, 6(1), 37-59,1999.
https://doi.org/10.1590/S0101-47141999000100003

Várzea do Carmo a Parque Dom Pedro II: de atributo natural e artefato – Décadas de 1890 a 1950. São Paulo, dissertação de mestrado. 2012. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-14092012-102923/pt-br.php

curadoria por:

Vanessa da Costa Ribeiro

Vanessa da Costa Ribeiro é historiadora formada pela FFLCH-USP, mestre em História Social pela FFLCH-USP. É autora de Várzea do Carmo a Parque D. Pedro II: de atributo natural a artefato. São Paulo: Edições Sesc, 2022. vanessacribe@gmail.com.

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