A parafernália dos doces

Por muito tempo, colheres de pau, tachos, compoteiras, fôrmas e assadeiras compuseram o arsenal das cozinhas domésticas com uma função muito específica: servir ao preparo de doces e quitandas. No acervo do Museu Paulista-USP, a presença de muitos desses objetos mostra a importância dessa atividade até meados do século 20 e sua íntima ligação com a identidade das mulheres

O açúcar e o tacho

Até a segunda metade do século 20, quando os refrigeradores elétricos começaram a ser produzidos no país e a se popularizar, conservar os alimentos para que durassem mais tempo era uma atividade fundamental e envolvia diversas técnicas. Uma das mais antigas consistia em preservar frutas em açúcar.

A produção açucareira do período de colônia e a tradição doceira de Portugal contribuíram para que o açúcar fosse um dos meios de conservação mais utilizados. Nos enormes tachos de ferro ou cobre, posicionados sobre o fogo do fogão a lenha ou de fogareiros improvisados no chão, cozinhavam-se as frutas em açúcar, mexendo a mistura com colheres de pau tão compridas quanto fosse possível para evitar respingos fumegantes nas mãos e nos braços.

A partir desse processo básico, as frutas podiam ser cristalizadas, permanecendo inteiras com uma casquinha de açúcar; podiam ser cozidas em pedaços e mantidas na calda doce (compotas) ou ainda desmanchadas e transformadas em massas homogêneas mais ou menos secas (marmeladas, goiabadas, bananadas, pessegadas). Dulcíssimas, as conservas eram, então, colocadas em grandes potes de barro – os boiões – ou em compoteiras de vidro, porcelana ou cristal, que as transportavam das cozinhas e despensas para as mesas de jantar.

caixetas ao sol

Essas singelas caixetas de madeira com fundo de estanho, hoje guardadas no acervo do Museu, tiveram função especial pelo menos até o início do século 20. Saídos do tacho ainda quentes, doces de massa como a goiabada eram despejados nesses recipientes e fechados com tampa. Em dias de sol, eram abertos e colocados para secar ao ar livre: a quentura do ambiente eliminava a umidade, prolongando a conservação e dando aos doces uma crosta açucarada e brilhante.

As mulheres e a arte de “temperar” o forno

Os doces de frutas em conserva, ou “doces de tacho”, como ainda hoje são conhecidos, se entrelaçaram de maneira tão profunda aos costumes e a um gosto coletivo que deixaram de ser associados à antiga necessidade de conservação. Ao lado dos “quitutes de forno” – as chamadas quitandas (broas, bolos, biscoitos e tudo o mais que poderia ser servido junto de chá ou café) –, passaram a ter significados próprios, especialmente ligados às mulheres a quem as normas sociais atribuíram por muito tempo a responsabilidade por seu preparo cotidiano.

Na São Paulo de fins do século 19, em uma sociedade que se modernizava e definia com cada vez mais intensidade papéis masculinos e femininos, fazer doces e quitandas era uma atividade tida como natural e intuitiva para as mulheres. Essas receitas agenciavam a “doçura” que embasava a construção da identidade feminina. As fôrmas que davam aos biscoitos e docinhos o formato de animais, flores, conchas e outros elementos da natureza constituíam e reforçavam a associação que se fazia entre as mulheres e um universo delicado e natural, em oposição ao mundo masculino da cultura e da técnica.

Apesar da suposta sutileza, preparar doces e quitandas requeria o manejo de objetos pesados e um saber-fazer importante, transmitido entre as gerações de mulheres. Era preciso, acima de tudo, dominar o fogo, tanto aquele que dava o ponto exato do açúcar para os doces de tacho quanto aquele que assava de forma ideal as quitandas.

Antes de serem acoplados aos fogões a gás, os fornos eram equipamentos únicos. De alvenaria (hoje conhecidos como “fornos de pão” ou “de pizza”), ficavam nos quintais e exigiam tanto trabalho que eram acesos apenas uma vez por semana ou em ocasiões especiais. A temperatura era controlada com os olhos e as mãos: o calor mais forte assava os biscoitos de polvilho. Em seguida, com a temperatura menos quente, colocavam-se no forno os pães doces. Depois, os pães de ló e, então, os bolos e os sequilhos. Por último, suspiros.

A arte de “temperar” o forno e manejar assadeiras e tabuleiros não era fácil; sua excelência tornava famosas as doceiras e fazia de algumas delas “cozinheiras de forno e fogão”. As receitas resultantes, não à toa, constituíram meios de renda e sobrevivência para as mulheres mais pobres, que as vendiam nas ruas ou por encomenda. Também foram, para as mais abastadas, meios de distinção social, possibilitando que incrementassem a posição da família ao impressionar as visitas com seus doces ou ao enviá-los como mimos para as “pessoas certas”, de quem se esperavam favores.

Tabuleiro de metal
Assadeira de metal
Assadeira de cobre
Assadeira de cobre com relevo art déco
Fôrma de doce de metal
Fôrmas de bombom ou biscoito em faiança

poderes guardados à chave

Enraizada no período de escravidão, a divisão de tarefas culinárias entre as mulheres seguiu até o início do século 20 atribuindo às donas da casa a supervisão das atividades e às empregadas, a execução de fato. A tensa relação hierárquica entre elas, ancorada em estigmas raciais e de classe, implicava poderes que foram também produzidos pelos objetos. No acervo do Museu, um suporte de licoreiras e cálices de cristal facetado vinha com uma fechadura e uma chave, que eram controladas pela dona da casa não apenas pelo valor em si do artefato. Assim como os doces que eram trancados na despensa, a chave construía limites de acesso e consumo dos licores, também eles conservas de frutas em açúcar e álcool, dependentes dos saberes femininos e considerados “bens” de família, com um valor cultural inquestionável.

enlatando tradições

Ao longo do século 20, o preparo caseiro de doces de conserva foi perdendo a relevância cotidiana. Mas o mesmo não se deu com seu consumo. Atenta ao longevo apreço por eles, a indústria investiu em versões enlatadas que, embora fossem processadas em larga escala e com conservantes químicos, mantiveram nas embalagens certos aspectos materiais da produção doméstica de doces como meio de convencer consumidores de sua almejada equivalência em qualidade.

Os antigos formatos das compoteiras inspiraram as latas e caixas industrializadas. Os motivos florais, as cenas românticas e outras imagens tidas como “femininas” que caracterizavam as louças de chá e café no acompanhamento de doces e quitandas servidos à família ou às visitas também passaram a estampar as novas embalagens. Até mesmo os papéis rendilhados, antes feitos à mão para embalar docinhos, apareceram em logotipos estampados em latas que chegavam a acomodar quase 2 quilos de biscoitos.

Compoteira oitavada de porcelana francesa Limoges, século 19
Forro rendilhado de uma caixa de papelão vendida pela doceria A Americana, década de 1920
Lata de biscoitos oitavada da marca Meister, primeira metade do século 20
Bordas rendilhadas no logotipo da lata de quase 2 quilos dos Biscoutos Jacareí, 1949


Para saber mais

ABRAHÃO, Eliane Morelli. História da alimentação. Cadernos de receitas e práticas alimentares, Campinas: 1860-1940. Campinas: Pontes, 2018.

AGUIAR, Viviane Soares. Chave da despensa, cetro da rainha do lar: a ação de um objeto na constituição de um “poder” feminino no ambiente doméstico. Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, p. 1-12. Disponível em: https://www.fg2021.eventos.dype.com.br/resources/anais/8/fg2020/1612036840_ARQUIVO_b87b59607ad6cc854255f1d8e24451be.pdf. Acesso em 29 mar. 2023.

AGUIAR, Viviane Soares. Objetos de cozinha, objetos. de si. In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Casas e Coisas. Coleção Museu do Ipiranga 2022. São Paulo: Edusp/Museu Paulista, 2022, v. 1, p. 118-136.

ALGRANTI, Leila Mezan. Os doces na culinária luso-brasileira: da cozinha dos conventos à cozinha da “casa brasileira” – séculos XVII a XIX. Anais de História de Além-Mar, v. VI, p. 139-158, 2005.

CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. Prefácio: Ecléa Bosi. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995 [1984].

GRUPO de Pesquisa Espaço Doméstico, Corpo e Materialidades. Museu Paulista-USP. Disponível em: www.sites.usp.br/gema.

HAHNER, June E. Honra e distinção das famílias. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (orgs.). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012, p. 50-77

LIMA, Tania Andrade. Chá e simpatia: uma estratégia de gênero no Rio de Janeiro oitocentista. Anais do Museu Paulista, São Paulo, n. sér. v. 5, pp. 93-127, jan./dez. 1997.

MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano, 1995.

LACERDA, Brazilia Oliveira Franco de. Dias ensolarados no Paraizo: memórias (1887-1966). São Paulo: Chão Editora, 2020.

curadoria por:

Viviane Soares Aguiar

Mestra e doutoranda em História Social na FFLCH-USP, é integrante do Grupo de Pesquisa Espaço Doméstico, Corpo e Materialidades (GEMA), vinculado ao Museu Paulista-USP. Atuou como pesquisadora associada da sala “Trabalho e Felicidade” da exposição Casas e Coisas.

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